Olá, meus leitores não mais quarentões. Vou ter que pensar num novo nome pra chamar vocês. Porque se tem uma coisa que o tempo nos ensinou, é que ele não para – nem pra nós, nem pra certos roteiros. E, falando em tempo e suas ironias, dias depois da notícia da morte do Papa Francisco, me vi assistindo ao filme Conclave (2024), disponível no Prime Video. Coincidência? Talvez. Oportunidade para refletir sobre fé, poder, e roteiros que tropeçam em si mesmos? Com certeza.
Dirigido com competência por Edward Berger (Nada de Novo no Front), Conclave é um desses filmes que se vendem como sofisticados, instigantes e necessários. E de fato, ele começa com todos os ingredientes que prometem um grande cinema: uma produção elegante, atuações de alto nível e uma ambientação que transborda simbolismo e solenidade. Mas é também uma daquelas obras que nos fazem lembrar que, sim, é possível estragar uma boa ideia com boas intenções (ou más, vai saber).
A trama se passa após a morte do Papa, e nos leva aos bastidores do conclave que escolherá seu sucessor. É aí que conhecemos o Cardeal Lawrence (Ralph Fiennes), decano da cúria romana e nosso protagonista. Um homem visivelmente cansado, carregando dúvidas de fé e uma agenda de tarefas e jogos de poder que fariam qualquer gerente de multinacional pedir férias. Sua missão: coordenar todo o ritual do conclave, lidar com as tensões internas da Igreja e, de quebra, manter alguma sanidade.
Berger nos conduz com precisão por corredores silenciosos, olhares cúmplices e intrigas clericais que, em um primeiro momento, prometem um drama à altura de um O Poderoso Chefão III (hey, esse também se passa no Vaticano) versão vaticana. Há um charme próprio nesses bastidores: o rigor dos ritos, a beleza dos figurinos, a coreografia dos pequenos gestos que anunciam grandes decisões. Até o cenário colabora. Não consegui confirmar se o filme foi rodado em locações reais ou em estúdios, mas me arrisco a dizer que há algo de familiar nos ambientes — quem lembra de Naboo, em Star Wars: Episódio I, talvez compartilhe essa impressão.
Mas como já dizia a minha avó: nem tudo que reluz é ouro. Ou, no caso, nem toda batina é profundidade. O roteiro de Peter Straughan, baseado no romance de Robert Harris, falha onde mais deveria acertar: na construção de personagens complexos e na entrega de uma narrativa que respeite a inteligência do espectador.
O elenco é afiado. Ralph Fiennes segura o filme nas costas com a competência de sempre. Stanley Tucci dá vida ao Cardeal Bellini, o progressista refinado e cerebral. John Lithgow interpreta o canalha Cardeal Tremblay, Sérgio Castellito nós traz o folclórico Cardeal Tedesco, representante de uma ala ultraconservadora e, pasmem, quase uma caricatura do estereótipo italiano: fala alto, gesticula como se tivesse nascido em Nápoles e tem a sutileza de um trator. E temos também Lucian Msamati como o Cardeal Adeyemi, africano, tradicionalista, e claramente desenhado para ser o contraponto ao discurso da modernidade. Só que nenhum deles escapa da armadilha do arquétipo raso. O roteiro nos entrega rótulos em vez de personagens: o progressista iluminado, o conservador surtado, o moderado que não decide.
E é aqui que o filme começa a escorregar feio. A relação entre esses cardeais poderia render diálogos tensos, debates teológicos de tirar o fôlego e reflexões sobre o futuro da Igreja. Mas o que recebemos são bordões com cara de reunião estudantil. A complexidade dá lugar à alegoria preguiçosa. Os personagens falam como se estivessem num seminário da USP e não numa reunião secreta da Cúria Romana.
A maior aposta do roteiro, no entanto, é o Cardeal Benítez, vivido por Carlos Diehz. Envolto em mistério, Benítez chega atrasado ao conclave, vindo de missões na África e no Oriente Médio. Seu nome foi incluído na lista de cardeais pelo Papa falecido, sem que ninguém soubesse. A ideia de introduzir um outsider ao processo de sucessão papal é boa – poderia funcionar como catalisador de tensões, metáfora para a Igreja em crise e até como comentário geopolítico. Mas o “mistério” em torno de Benítez é tão mal costurado que quem já viu dois thrillers na vida saca o final antes mesmo da metade do filme.
Spoiler alert a partir de agora, então se você pretende assistir ao filme sem saber o que acontece, vá lá, assista, e depois volte aqui. Prometo esperar.
Seguimos? Então vamos.
Em um dado momento, o teto da Capela Sistina literalmente desaba sobre os cardeais. Um atentado terrorista islâmico ocorre, e a tensão explode (literalmente). O Cardeal Tedesco, sempre no limite da histeria, declara que o cristianismo está em guerra contra “esses animais”. Em resposta, Benítez o confronta com um belo e ensaboado “quem é você para falar de guerra?”, embalado num discurso que mistura misticismo de autoajuda com filosofia de calourada. E é exatamente esse momento, tão constrangedor quanto previsível, que sela seu destino: ele será eleito Papa.
Até aqui, poderíamos engolir a obviedade do roteiro com uma certa resignação. Pelo menos acompanhamos o arco de Lawrence, certo? Aquele homem em dúvida, que talvez encontrasse alguma forma de fé no meio do caos? Errado. O roteiro nos nega até isso. Em vez de um encerramento digno, ele entrega uma reviravolta que beira o surreal – e não no bom sentido.
Descobrimos, nos últimos minutos do filme, que Benítez é intersexual. Sim, isso mesmo. O novo papa é hermafrodita, e essa revelação cai sobre a narrativa como um piano desgovernado. Nenhum personagem reage de forma minimamente plausível. Nenhuma consequência é explorada. O roteiro simplesmente joga essa bomba no colo do espectador e sai andando, como quem solta um “ah, esqueci de te contar uma coisinha…” no fim do jantar.
Essa informação, que poderia ser o ponto de partida para uma discussão poderosa sobre identidade, tradição e fé, é tratada como um detalhe estético, um toque de ousadia editorial. Só que não funciona. Não há tempo hábil para desenvolver a questão, nem espaço para refletir sobre o impacto disso numa instituição milenar como a Igreja. E o pior: essa revelação contradiz o próprio arco do Cardeal Lawrence, que, ao longo do filme, se mostrou inflexível com outros cardeais envolvidos em escândalos ou irregularidades. De repente, tudo vira irrelevante. Um “deixa disso” narrativo que desrespeita o pouco que havia sido construído.
Conclave tinha tudo para ser um filmaço. Tinha elenco, direção, atmosfera. Tinha um tema instigante e atual. Mas tropeçou num roteiro que quis demais e entregou de menos. A tentativa de equilibrar mistério, crítica social e espiritualidade resultou num amontoado de intenções mal alinhadas. E quando se tem pressa em agradar todos os lados, acaba-se falando com ninguém.
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Até a próxima, meus leitores ainda sem nome novo.