Tem dias em que a gente gira e nem nota. Gira o pensamento, a memória, o corpo. Tal qual numa roda de capoeira, giramos numa roda de conversa, num encontro de família. Giramos na vida como uma pista de dança (seja que ritmo for, dance). Nesse cotidiano que bailamos, cada som pode ser um convite a lembrar quem se é, o que se desapegou ou a força de uma saudade feliz. E assim seguimos, como quem caminha em espiral: um giro infinito, mas que nunca passaremos exatamente pelo mesmo lugar.
Como praxe, trago uma playlist que acompanha esta décima primeira edição: Explorando Sonoridades 11 – 16.06.2025 (Spotify) que é um giro entre sons que faz escutar nosso corpo com mais presença, afeto e perceber nossos ruídos internos. Ah, é uma seleção com apenas artistas brasileiros (MPB continua sendo o estilo que mais consumo).
1)- Artista: Pitty – Álbum: Matriz (2019)
Começamos com Pitty, que no álbum Matriz (2019) reafirma raízes e reinvenções. Cheguei nesse trabalho musical admirável, pela faixa “Roda”, parceria com o coletivo BaianaSystem, é exatamente isso: um ponto de encontro entre tradição e pulsação urbana. Depois junte o riif de guitarra que traz “essa verdade que vem do nordeste” e a batida sedutora afro-baiana que convoca corpo e território: “… nunca é tarde demais”. É música que gira no chão batido das festas populares e no asfalto quente das lutas políticas. Um som de invocação.
2)- Artista Paulo Monarca – Single Vem Me Ter (larga a moage) (2024)
Na sequência, vem o swing desbocado de Paulo Monarca, convida para um flerte que é também libertação. O single recém-lançado para “Vem Me Ter (larga de moage)” é uma grata parceria com a banda Calorosa, criada em Cuiabá (MT). O sotaque vem cheio de lambadão e bem caprichado de inteligência popular. Tudo salpicado por um beat cafona na medida, pois vai misturar amor com a resistência cotidiana: “Gravei o cheiro que você tem / Meu bem / Larga de moage e vem me ter”. Aqui, moer menos, quer dizer “vá viver mais”. Um jeito de dizer que quando a alegria chegar, lembre-se que é um direito sentir-se bem. Curta sem pré-conceitos essa música que transita pelo reggae, pop, guitarra baiana e pitadas de eletrônico. Admire a fusão perfeita.
3)- Artista Braza – Álbum Baile Cítrico Utrópico Solar (2025)
O quarteto carioca Braza já está no meu play faz tempo, pois enxergo em seus trabalhos uma gratificante energia do agora. Contam o cotidiano, com dialética solta que adere as batidas. Livres de histeria, cada projeto deles costura muito bem produções autorais e parcerias com artistas em igual originalidade. Mas em “Magnética”, faixa que abre o novíssimo álbum Baile Cítrico Utrópico Solar (2025), o som é luminoso, dançante e cheio de uma eletricidade refrescante. Pulsa como uma cidade viva e colorida, onde tudo vibra: desejos, afetos, presença. É música que impacta e intui vontade de dançar e esquecer o relógio. Um manifesto de identidade vibrante, onde o que atrai é “Mistério e mar / Maracujá, doce sabor / Queria tudo outra vez”. Um caldeirão misturando reggae, soul, rap, funk, riffs de rock.
4)- Artista João Gomes, Mestrinho, Jota.Pê – Álbum Dominguinho (2025)
E então chega o trio formado pelo pernambucano João Gomes, pelo sergipano Mestrinho e paulista Jota.Pê, com essa pérola linda de ver e ouvir. O projeto nomeado como Dominguinho (2025), é um especial gravado ao vivo numa pacata rua de Olinda (PE). Ajusta repertório de João Gomes, com material de Mestrinho e Jota.pê. além de outros autores: Kara Véia e Chorão. Achei tão sofisticado como a simplicidade nos envolve enquanto acompanhamos esse fim de tarde de um domingo qualquer. De uma delicadeza sonora comovente, repleta de uma imensidão nordestina, num cenário da linda Olinda – vale buscar esse projeto também pelo Youtube e você vai entender tudo que tento aqui descrever. Escolhi a faixa que abre o álbum “Lembrei de Nós”, pois aqui temos forró de rosto coladinho, muito bem cantado e com essa sanfona que conduz todo esse sentimento de ser um par, uma dupla: “Você me resolve”. É som de reencontro, sobre a força e a sorte de sentir afeto num canto do coração. É memória afetiva embalada em melodia quente, que convida para mais 11 faixas no álbum, onde temos um show inteiro muito bem costurado em três personalidades vocais. Versões adaptadas para esse formato intimista, onde mesmo que estejam cantando em plena rua, a captação de áudio merece palmas pela nitidez. Para tornar mais especial, eles encerram esse rico encontro, com uma versão “rock`n roll agoniado” sanfonado para “Pontes Indestrutíveis”, dos santistas do Charlie Brown Jr: “Resgate suas forças e se sinta bem / Rompendo as forças da própria loucura / Cuide de quem corre do teu lado / E quem te quer bem / Essa é a coisa mais pura”.
5)- Artista Joca, Tuyo – Single Não Me Reconheço (2025)
Mais adiante, o clima se volta para dentro. O niteroiense Joca se junta ao trio curitibano Tuyo para entregarem “Não Me Reconheço”. Uma canção de desencaixe, de olhos no espelho que não entendem o reflexo: “Só o tempo para curar as feridas”. É o tipo de som que acompanha dias onde não existe certezas, mas há música para sustentar o pensamento. Porque até a perda de identidade é parte do processo de reconstrução. Separações, mudanças de trajeto, tempo de construir novas pontes: “Tive que mudar de casa / Tive que mudar a conversa comigo”.
6)- Artista Buena Onda Reggae Club – Álbum Disco 2 (2020)
Por fim, vem um manifesto em beat lento e cativante. Trago foco para o sabor nos trabalhos destes sete instrumentistas paulistanos que formam a Buena Onda Reggae Club. São três álbuns: Buena Onda (2017), Disco 2 (2020) e Take 3 (2023), onde distribuem sem cerimônia nenhuma, música jamaicana instrumental lindamente produzida para salões de dança. Um balaio de Ska Jazz e Rocksted, ricamente adornado com instrumentos de sopro e uma bateria elegante. Do segundo álbum escolhi a faixa “A Luta Continua”, por entender ser uma sonoridade que sintetiza resistência, harmonia e coletividade. O reggae aqui não é para relaxar. A batida vem para lembrar que não se caminha só e que o som também é ferramenta de construção social. Se a luta continua, o som segue adiante e nos mostra a cadência dessa eterna batalha do cotidiano.
E se tudo isso começou com uma roda, que seja também com ela (Pitty) que terminaremos girando de volta ao início, mas não iguais: “… nunca é tarde demais” (Pitty).
Cada faixa dessa playlist não foi apenas escutada. Foi sentida faixa à faixa. E com elas, atravessamos imagens e momentos que acontecem dentro de nós mesmos. Com elas podemos ouvir nossas potências, nossas faltas, nossas memórias e esperanças.
Nós em espiral constante, porque a roda não vai parar nem por mim, nem por ninguém. Se permitir dançar de tempos em tempos, vira um tipo de resposta para muitas demandas.
Vida longa ao som bom (em um bom som).